quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Charlie-Hebdo, uma história politicamente incorrecta


Charlie-Hebdo apareceu pela primeira vez nos quiosques em 23 de Novembro de 1970, herdando a equipa e a irreverência do L’Hebdo Hara-Kiri, “journal bête e méchant”, revista que foi proibida pelo poder político francês.

Hebdo Hara-Kiri foi uma publicação que surgiu, em 3 de Fevereiro de 1969, como resultado da irreverência do Maio de 1968 e como “apêndice” mensal da revista Hara-Kiri Mensuel, fundada em Setembro de 1960, com origem na equipa de uma revista satírica underground, ”Cordées”.

O Hara Kiri mensal publicou-se  até 1985, tendo conhecido mais três séries efémeras, uma entre 1986 e 1987, outra em 1988 e uma terceira em 1996 que durou até o início do século XXI, mas apenas com texto .

A edição mensal desse título , fundado por François Cavanna e Georges Bernier ( “professor Choron”), vendia-se quase à socapa, e foi a génese do espírito irreverente que veio a marcar mais tarde o Charlie-Hebdo, já que foi no Hara-Kiri que começaram a colaborar cartoonistas e desenhadores de BD como Reiser, Fred, Gébé, Wolinski, Cabu, Siné e outros.

Foi portanto o L’Hebdo Hara-Kiri que foi o antepassado directo do Charlie Hebdo.

A última edição desse semanário, o nº 94 de 16 de Novembro de 1970, levou à interdição do semanário por causa da forma irónica como se referia à morte do general De Gaulle : “Bal Tragique A Colombey – 1 Mort”, uma comparação sarcástica entre o número de mortos no incêndio de um  baile (“bal”) , onde morreram dezenas de pessoas, acontecimento que teve lugar na mesma semana da morte do general, e o local onde De Gaulle foi sepultado, ironia que não agradou à censura francesa.


(o último número do L'Hebdo Hara-Kiri)

Encerrado o título, a equipa “mudou-se” de armas e bagagens para um novo título, publicado na semana seguinte, o Charlie-Hebdo, que foi buscar o título, não tanto à revista mensal com esse título, mas ao diminutivo pelo qual era conhecido o General CHARLES De Gaulle.


(nº1 do Charlie Hebdo - o título marca o tom irónico de ter nascido de um acto de censura)

Reiser, Cabu, Wolinski, Siné e Gébé, entre outros, celebrizaram a revista com os seus cartoon’s e pranchas de BD de um humor ácido e malcriado, ao qual não escapava ninguém, do mundo da política, da cultura, do desporto e da religião, sendo por isso alvo de vários processos judiciais, censura e perseguições políticas.



(a única vez em que a situação portuguesa foi tema de capa do Charlie Hebdo. Vivia-se em plena revolução de Abril)

A partir de 1980 começou a perder o seu fulgor inicial e entrou em decadência, procurando novos caminhos para se salvar, incluindo a mudança de nome, “La Semaine de Charlie” durante 10 edições, regressando às origens como L’hebdo Hara-Kiri (durante 23 números), acabando por se finar, nesta sua primeira série, em 11 de Fevereiro de 1981, após 581 edições.

Em paralelo, em parte para poderem sobreviver financeiramente, os autores desta primeira série tiveram de colaborar em revista mais “sérias” , como no seu homónimo Charlie Mensuel (1969-1981), que chegou a ser dirigida por Wolinski durante grande parte da sua existência e que conciliava a edição de autores clássicos com a divulgação da BD underground. (Esta revista conheceu uma segunda série entre 1982 e 1986, sob a direcção criativa de Nikita Mandryka e Philippe Mellot e a direcção editorial de Claude Moliterni).

Outro recurso financeiro para a sobrevivência dos cartoonistas do Charlie-Hebdo  foi a sua colaboração na a revista “Pilote”, que, aliás, se acabaria por fundir com o Charlie-Mensuel em 1986 com o novo título Pilote et Charlie.

Em 1 de Julho de 1992, 11 anos depois de ter desaparecido das bancas, o Charlie-Hebdo voltou sob a direcção de Philippe Val, Gébé, Cabu e Renaud, muito menos iconoclasta e mais conformista, seguindo muitas vezes a linha da agenda política de uma “nova” esquerda dita "liberal ".

Esta segunda série seria marcada pelos confrontos entre Phillipe Val e o resto da equipa oriunda da primeira série.

Val estava mais interessado em agradar ao poder político e à esquerda instalada, e esse confronto atingiu o seu auge com o “caso Siné”(clicar para ler notícia) em 2008.


(uma capa sugestiva sobre o "caso Siné")

Na edição de Julho de 2008, no seu nº 837, o Charlie-Hebdo publicou uma crónica de Siné, um dos mais famosos cartoonistas da publicação (autor da célebre bandeira portuguesa dividida), onde este denunciava com ironia o oportunismo político do filho de Sarkozy, Jean, que, para se casar com uma rica herdeira de uma das famílias judias mais influentes de França, se converteu ao judaísmo, rematando a sua crónica com um “il fera le chemin de la vie, ce petit”.

Val, que tinha contas antigas a ajustar com Siné, e querendo agradar ao poder político e judicial, bem como a loby judeu, despediu o cartoonista. Siné teve o apoio de vários dos históricos do Charlie Hebdo, como Charb, Plantu, Willem, Tignous, Picha, Tardi, Honoré, Cavanne e outros.

Um outro autor do semanário, Michel Poloc, foi igualmente vitimas do “censor” Val .
(cartoon alusivo ao caso Siné)

Saindo, Siné acabou por fundar a revista humorística “SinéHebdo”, actualmente “Siné Mensuel”, que herdou o espírito original do Charlie-Hebdo.









Val saiu finalmente do Charlie Hebdo em 2010 e o semanário, sob a direcção de Charb, um dos cartoonistas agora assassinado, reencontrou o seu espírito irreverente original, embora ainda não se tenha livrado da imagem de ser um jornal irreverente com as religiões islâmica e cristã, mas ainda reverente e cuidadoso com  a religião judaica.




(uma capa falsa do Charlie Hebdo que critica o modo como o semanário poupa a religião judaica, comparativamente com o tratamento dado à religião islâmica e ao cristianismo, situação que só se alterou com a saida de Val da direcção da revista)

Com  morte de cinco dos seus mais carismáticos cartoonistas, Charb, Cabu, Wolinski, Tignous e Honoré, espera-se o inicio de uma nova etapa na já longa história deste jornal de referência no humor, no cartoon e na Banda desenhada.

Aliás, será curioso imaginar o que estes pensariam do oportunismo e do cinismo de muitos politicos que estiveram presente na homenagem em Paris. Alguns desses políticos e aquilo que eles representam nada tem a haver com o espírito dos cartoonistas assassinados e, muitos dos lideres presentes continuam a não respeitar a liberdade de expressão nos seus próprios países.

Longa vida ao Charlie Hebdo!


UMA PEQUENA MOSTRA DA IRREVERÊNCIA DE CHARLIE HEBDO ATRAVÉS DAS SUAS CAPAS (sem ordem cronológica):



















































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