quarta-feira, 1 de junho de 2022

…”E quem não sabe ler, vê os bonecos”! (a minha vida com Banda Desenhada)


Recordo-me bem, quando ia a Lisboa, de ouvir os ardinas a publicitar os títulos de revistas de Banda Desenhada e “fotonovelas” com o pregão, ecoando na estação do Rossio : “quem não sabe ler, vê os bonecos”. Vivíamos. Recorde-se, num país onde o analfabetismo e a iliteracia eram esmagadoramente dominantes.

Não me lembro se comecei a ler com a banda desenhada ou se descobri a BD porque aprendi a ler.

Sei que comecei a desenhar as primeiras historias aos quadradinhos  quando andava na escola primária, um infantil, naif e mal desenhado “pato Zé Zó”, tentando imitar as aventuras do Pato Donald, por “influência” das primeiras revistas de BD que entraram lá em casa , muito graças ao facto de ter um avó, dono de uma pequena papelaria/livraria, que me oferecia, regularmente, as revistas do Pato Donald, do Tio Patinhas e do Mickey, edições brasileiras  dessas personagens criadas por Walt Disney para o cinema de animação. Essas revistas eram editadas pela “Abril” desde 1953.

Lá por casa também existiam algumas antigas revistas de BD colecionadas pela minha mãe, como alguns números avulso do “Mosquito” (1936-1953)  e do “Cavaleiro Andante” (1952-1962), e algumas edições encadernadas do “Diabrete” (1941-1951), onde conheci a série de Hergé “Quim e Filipe”, aportuguesada para “as tropelias do Trovão e do Relâmpago”, desconhecendo eu, na altura, que essa série era da autoria do pai de Tintin.

Em paralelo, seguia as excelentes páginas dominicais do Primeiro de Janeiro (1948-1995), onde eram publicas as pranchas de alguns dos “clássicos” da BD, o “Príncipe Valente” de Hal Foster (criação de 1937), o “Reizinho” de Otto Soglow (criação de 1931), o “Coração de Julieta” de Stan Drake ( de 1953) ou o “Zé do Boné”, no original o famoso Andy Capp do britânico Reg Smythe (série criada em 1947), para além de, durante o natal, aquele suplemento publicar uma aventura em BD, e em continuação, reproduzindo os mais recentes filmes de animação da Disney.

A partir do momento em que lá por casa começou a entrar regularmente o Diário de Lisboa, lembro-me de recortar e colecionar as aventuras de Marco Polo em BD, da autoria de um então quase desconhecido …Albert Uderzo (pai do Astérix), história publicada pela primeira vez em 1953 nas páginas de “La Libre Júnior”, com argumento de Octave Joly, assim como as “tirinhas” do Peanuts, criação de Charles Schulz de 1950,  publicadas diariamente na páginas daquele diário.

Recorde-se, aliás, que quase todos os jornais publicavam diariamente “tirinhas” de BD, umas humorísticas, outras mais realistas e em continuação.

Foi assim que conheci uma das minhas séries preferidas, “O Feiticeiro de ID”, série criada por Brant Parker e Johnny Hart em 1964 e publicada nas páginas da “Capital”, outro jornal que, a partir dos finais da década de 60 também entrava regularmente lá por casa. Este jornal também publicou, a partir de 1972, um excelente suplemento semanal de Banda de Desenhada, “Quadradinhos”, concorrendo com dois suplementos mais antigos desse género, a “Nau Catrineta” no Diário de Notícias (1964-1974) e o “Pim-Pam-Pum” no Século (1925-1977).

Este último suplemento de BD, que saia às 5.ªs feiras, era-me regularmente oferecido pelo meu avó, leitor regular de “O Século”.

Tudo isto se passa ao longo da década de 60, entrando também, por essa altura, lá em casa, várias revistas de “quadradinhos”, entre elas “O Foguetão”, que apenas publicou 13 números em 1961, e da qual cheguei a ter a colecção completa, extraviando-se anos depois, mas que está hoje disponível no site da Hemeroteca, a da qual apenas mantenho o suplemento “Bip-Bip”, patrocinado por uma petrolífera, mas onde contactei pela primeira vez com séries que me acompanhariam para a vida, o Tintin, na sua aventura no Tibet, editada em francês, com intensões pedagógicas (o francês era, então, a segunda língua ensinada nas escolas), a primeira aventura de “Astérix o gaulês”, a “Armadilha Diabólica” da série Blake e Mortimer, Jerry Spring de Jijé e Michelle Vaillant. Devido à curta vida dessa revista, todas essas aventuras ficaram incompletas e, só mais tarde, pelos anos 70 na revista TinTin ou ainda mais tarde em álbum, consegui ler o resto dessas aventuras. De qualquer modo, a partir daí, fiquei fã da BD franco-belga, em detrimento de outras correntes da 9ª arte.  

Também por essa altura comecei a comprar e a seguir, mas de forma irregular, outra revista, onde a BD franco-belga era dominante, como a revista Zorro, cuja publicação se iniciou em 1962, publicando-se até 1966. Lembro-me de, nesta revista, me ter fascinado uma aventura de Ric Hochet, “A Sombra de Camaleão”, publicada nessa revista em 1964. A intermitência na compra dessa revista, levou-me a só conhecer o fim dessa aventura muito recentemente, numa reedição em francês.

Lembro-me também de aparecerem lá por casa outras revistas como “o João Ratão”, que se editou entre 1956 e 1963, ou a 2ª série d’ “O Falcão” (1960-1987), principalmente quando nesta revista o herói publicado era o Major Alvega.

O Major Alvega foi a aportuguesamento de Battler Britton, as aventuras de um aviador inglês da 2ª Guerra cuja série foi criada em 7 de Janeiro de 1956, com desenhos de Geoff Campion e argumento de Mike Butterworth, série publicada em Inglaterra até 1987 e que teve mais de 10 desenhadores a dar continuação à série, entre eles os consagrados Hugo Pratt e o argentino Dino Battaglia. Na publicação em Portugal, por imposição da censura nacionalista, o heroico aviador foi baptizado de Major Alvega, como “luso-britânico”, filho de “pai alentejano” e mãe inglesa.

Mais raramente, também adquiria  números dispersos de  “O Mundo de Aventuras” (1949-1973) ou das “micro-revistas” “Condor Popular” (1954-1972) e “Ciclone” (1961-1972), onde descobri séries lendárias como o “Fantasma” ou o “Mandrake”, dois clássicos com argumento de Lee Falk, a primeira desenhada por Ray Moore e criada em 1936, a segunda desenhada por Phil Davis e criada em 1934. Personagem famosa dessas pequenas revista era o boxeur Zé do Sopapo, aportuguesamento de Joe Palloka, outro clássico inventado em 1921, mas só publicado em 1930, por Ham Fischer, que teve como assistente outro nome famoso da BD norte-americana, Al Capp, criador, em 1934, de L’il Abner.

Esporadicamente também adquiria revistas editadas pela íbis ou pela Abril, geralmente as versões em BD  de séries norte-americanas de animação, como o “Pinduca” (1953-1958). O “Mindinho” (1953-1966), “O Gasparzinho” (1970-1977), o Pernalonga, mas também as séries brasileiras Turma da Mónica e  Cebolinha, criados por  Maurício de Souza em 1959 e editados em revista a partir de 1970. Da Mónica, agora “adolescente”, ainda se continuam a editar revistas que podemos encontrar em quiosques.

Havia uma outra revista, num formato estranho, divulgando as aventuras do “Capitão Trovão”, editado pela Íbis, um cavaleiro do século XII. Mais tarde vim a descobrir que essa série de excitantes aventuras era de origem espanhola, intitulada “Capitán Truena”, da autoria do catalão Victor Mora, filho de pais exilados em França, como consequência da Guerra Civil, voltando ao seu país natal em 1941, criando aquela série em 1956, voltando ao exílio francês em 1962, perseguido pelo regime franquista.

Come se vê, existia então uma grande profusão de revistas de quadradinhos, de publicação regular, vendidas em quase todos os quiosques ou pelos ardinas “ambulantes”.

Já a edição de álbuns, hoje quase a única forma de contactar com a BD,  era rara nessa época, e acessível apenas a alguns, devido ao preço. Alguns era editados no Brasil, como os primeiros do TinTin.

Dos poucos álbuns que tive nessa altura, o de que me lembro melhor foi o “Quebra Ossos”, álbum de 1963, tradução portuguesa de “Les Croquillard”, de 1957, da série Clorofila e Minimum. Esse álbum foi uma edição da revista “Camarada”, revista infanto-juvenil editada pela Mocidade Portuguesa, onde foi publicada aquela aventura da série criada por Raymond Macherot em 1954.

Curiosamente, esse álbum atinge hoje o maior valor de colecção na venda de álbuns de BD em Portugal. Infelizmente , esse foi um dos álbuns que me desapareceram.

Quem possuía muitos desses álbuns era o nosso amigo “Zico” que os levava para a praia, e que nós devorávamos nas longas tardes de verão. Aí lemos muito Astérix, Blake & Mortimer, TinTin, Luke Luke, Tenente Bluberry….

Foi também por essa altura, já em meados dos anos 70 , que nos deliciávamos com a rebeldia da Mafalda do argentino Quino, série criada em 1964 e 1973, mas que só foi editada em Portugal em meados da década de 70. Do “grupo da praia de Santa Cruz”, já jovens adolescentes, entretínhamo-nos a tentar identificar cada um de nós com os vários personagens da série. A mim identificavam-me com o “Miguelinho”.

Tenho o privilégio de ter um desenho original da Mafalda que me foi oferecido pelo próprio Quino, certa vez que com ele me cruzei numa Feira do Livro em Lisboa.

Voltando aos anos 60, por esta altura, juntamente, com o meu irmão Mário Luís, com o Carlos Ferreira e o seu irmão Marcos, fazíamos revistas de um único exemplar com histórias por nós (mal) desenhadas, imitando as revistas que tínhamos lá por casa. Pela minha parte “editava”, entre “outras”,  a “revista” “Gavião”, uma imitação naif do Falcão.

Mas foi o aparecimento em Portugal da revista Tintin, em 1 de Junho de 1968, que contribui para o crescente entusiasmo do pessoal pela Banda Desenhada.

Recordo-me de ter começado a receber regularmente a revista, a partir do seu segundo ano de edição, em 1970, que me era oferecida pelo meu avô. Tirando a irregularidade dos 2 primeiros ano, e a falta posterior de um ou outro número, consegui manter, até hoje, a colecção  quase completa dessa revista, que se publicou ao longo de 15 anos, até 1982.

Foram os textos de divulgação publicados nessa revista por Vasco Granja que nos informaram do crescente movimento dos fanzines.

Todos queríamos imitar as aventuras de TinTin ou Blake Mortimer, e de outros heróis da BD franco-belga divulgadas por essa revista. Essa revista tinha, aliás, uma característica única, publicando, não só os “heróis” da revista belga original, mas também da revista francesa, mais criativa e original, Pilote, ampliando muito o leque de séries de grande qualidade publicadas na edição portuguesa.

Em 1971 atrevi-me a divulgar, pela primeira vez, algumas “pranchas” da minha autoria, como “suplemento” do jornal do liceu “O Padrão”, editado por uma organização juvenil ligada à Mocidade Portuguesa.

O primeiro número desse jornal do “núcleo de jornalismo do Liceu Nacional D. Pedro V – secção de Torres Vedras”, dirigido pelo saudoso amigo Jordão Pereira, saiu em Janeiro/Fevereiro de 1971 e, nas duas primeiras edições, inclui um suplemento “O Padrão Ilustrado” onde publiquei, em 2 edições, 4 pranchas das “Aventuras de João Alfredo”, intitulando-se essa primeira, única e incompleta aventura “O Assalto ao Banco Nacional”.

O processo utilizado era o do “stencil a cera”, impresso a “álcool”, tendo permitido editar duas pranchas a 4 cores, obrigando a desenhar em stencil e repetidamente, a cores diferentes, essas pranchas, para se conseguir obter essa “variedade” de cores. Escusado será referir a pouca qualidade dos desenhos da minha autoria, algo naïfs, mas que procuravam imitar a “linha clara” de Tintin.

Entretanto fui-me cruzando com outros colegas do liceu que, consumidores da revista TinTin e da BD, alguns com melhores qualidades que as minha para o desenho, fomos trocando ideias e acompanhando com entusiasmo o crescente movimento de fanzines, cuja evolução era narrada regularmente por Vasco Granja nas suas crónicas de divulgação publicadas naquele semanário.

Em 1972 surgiu o primeiro fanzine português de BD, o Argon e nós, em 6 de Janeiro de 1973, lançávamos o primeiro número do fanzine “Impulso”, editado pelo Liceu de Torres Vedras, usando o método do processo electórnico, muito mais “avançado” e fácil de trabalhar que o stencil a cera usado no “Padrão”.

Sobre a história do Impulso e os dos seus autores, bem como do “sucedâneo” BêDêzine, fala-se mais em pormenor noutro artigo.

Saliento apenas a minha criação de uma série animalista, “Formiguite”, inspirado no cruzamento dos ambientes do já citado Clorofila e Minimum e de uma aventura que li nos meus tempos de infância, numa colecção que havia lá em casa do suplemento do “Mosquito” intitulado “A Formiga”, a série “Anita Pequenita” da autoria do espanhol Jesus Blasco. Esta série pretendia ser uma metáfora aos tempos da ditadura em que vivíamos nesse ano distante de 1973. A série nunca foi terminada, embora tenho elaborado, pela primeira vez, um argumento de base, em vez de ir desenvolvendo a história à medida do tempo…

Entretanto, entre os finais de 1975 e o início de 1976, ainda no rescaldo do PREC,  tive oportunidade de publicar, durante cerca de 30 semanas, uma série de “tirinhas” de Banda Desenhada, nas páginas do jornal local de Torres Vedras "Oeste Democrático", o “Rei Minimus”.

A primeira tira tem a data de 20 de Junho de 1975.

Em 1985 retomei essa série, em novos moldes, com o objectivo de participar no Iº Salão de Banda Desenhada de Torres Vedras, que se realizou entre 14 e 22 de Dezembro desse ano.

Tirando a sua divulgação nessa exposição, esta 2ª série ficou inédita, apresentando nesta edição comemorativa do Impulso alguns desses “bonecos”.

Se a primeira série era ainda muito marcada pelo espírito revolucionário dos anos 70, a adesão à então CEE é um dos temas focados nesta segunda série, onde se recuperaram igualmente algumas das pranchas e temas da primeira série.

O que mais me surpreendeu, passados quase 50 anos, é actualidade desses cartoon's, muito influenciados pela série norte-americana do Feiticeiro de Id, de J. Hart.

Devo dizer que, depois do 25 de Abril, aprofundei o meu envolvimento no cineclubismo, acompanhei o entusiasmo da vida política e associativa, estive no lançamento do jornal “Área”, conclui o meu curso de História, envolvi-me na profissão de professor e na investigação da História local e, ao longo das décadas de 80 e 90, fui-me, progressivamente, desligando do mundo da BD, desfazendo-me até de algumas revista e álbuns que possuía.

Tendo-me envolvido, já neste século, no movimento dos blogs, voltei a interessar-me pela BD, tendo reeditado as duas séries do “Rei Minimus”  no meu blog Pedras Rolantes, em 2008.

Foi assim que, progressivamente, me voltei a interessar pelo universo da BD, criando um blog dedicado à 9ª arte e ao Cartoon, “BêDêzine”, em 2014,  reiniciando aqui, no dia 8 de Outubro de 2020, a divulgação de alguns daqueles cartoons, bem como outros inéditos que estavam guardados.

Inicialmente  intitulada  como "Rei Minimus", rebaptizei-a agora como  "ReiNação".

Assim, nos últimos anos, tenho voltado a acompanhar o que se vai fazendo na BD, apercebendo-me que tem havido uma grande inovação nesta arte, através da realização de festivais e da edição de álbuns, arte que conhece uma grande dinâmica criativa na França e na Bélgica, apesar do domínio comercial, quase absoluto, dos “comic’s” “marvelianos” e da “manga”.

Pessoalmente, fico-me pela divulgação no meu blog “BêDêzine” e pela recuperação de trabalhos meus de outros tempos, não me atrevendo ainda a tentar retomar o desafio de desenhar personagens de BD. (

2 comentários:

  1. És mais um grande valor de Torres Vedras, digno dos teus pais. O teu Pai disse um dia que tinha receio de te ter criado complexos.

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  2. No dia em que te vi, numa Sessão do Teatro Cine, do Cine Clube, a falar para o
    .. povo, Ele já cá não estava, fiquei feliz.

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