Recordo-me bem, quando ia a Lisboa, de ouvir os ardinas a publicitar os títulos de revistas de Banda Desenhada e “fotonovelas” com o pregão, ecoando na estação do Rossio : “quem não sabe ler, vê os bonecos”. Vivíamos. Recorde-se, num país onde o analfabetismo e a iliteracia eram esmagadoramente dominantes.
Não me lembro se comecei a ler com a banda desenhada ou se
descobri a BD porque aprendi a ler.
Sei que comecei a desenhar as primeiras historias aos
quadradinhos quando andava na escola
primária, um infantil, naif e mal desenhado “pato Zé Zó”, tentando imitar as
aventuras do Pato Donald, por “influência” das primeiras revistas de BD que
entraram lá em casa , muito graças ao facto de ter um avó, dono de uma pequena
papelaria/livraria, que me oferecia, regularmente, as revistas do Pato Donald, do
Tio Patinhas e do Mickey, edições brasileiras dessas personagens criadas por Walt Disney
para o cinema de animação. Essas revistas eram editadas pela “Abril” desde
1953.
Lá por casa também existiam algumas antigas revistas de BD
colecionadas pela minha mãe, como alguns números avulso do “Mosquito”
(1936-1953) e do “Cavaleiro Andante”
(1952-1962), e algumas edições encadernadas do “Diabrete” (1941-1951), onde
conheci a série de Hergé “Quim e Filipe”, aportuguesada para “as tropelias do
Trovão e do Relâmpago”, desconhecendo eu, na altura, que essa série era da
autoria do pai de Tintin.
Em paralelo, seguia as excelentes páginas dominicais do
Primeiro de Janeiro (1948-1995), onde eram publicas as pranchas de alguns dos
“clássicos” da BD, o “Príncipe Valente” de Hal Foster (criação de 1937), o “Reizinho”
de Otto Soglow (criação de 1931), o “Coração de Julieta” de Stan Drake ( de
1953) ou o “Zé do Boné”, no original o famoso Andy Capp do britânico Reg Smythe
(série criada em 1947), para além de, durante o natal, aquele suplemento
publicar uma aventura em BD, e em continuação, reproduzindo os mais recentes
filmes de animação da Disney.
A partir do momento em que lá por casa começou a entrar
regularmente o Diário de Lisboa, lembro-me de recortar e colecionar as
aventuras de Marco Polo em BD, da autoria de um então quase desconhecido
…Albert Uderzo (pai do Astérix), história publicada pela primeira vez em 1953
nas páginas de “La Libre Júnior”, com argumento de Octave Joly, assim como as
“tirinhas” do Peanuts, criação de Charles Schulz de 1950, publicadas diariamente na páginas daquele
diário.
Recorde-se, aliás, que quase todos os jornais publicavam
diariamente “tirinhas” de BD, umas humorísticas, outras mais realistas e em
continuação.
Foi assim que conheci uma das minhas séries preferidas, “O
Feiticeiro de ID”, série criada por Brant Parker e Johnny Hart em 1964 e
publicada nas páginas da “Capital”, outro jornal que, a partir dos finais da
década de 60 também entrava regularmente lá por casa. Este jornal também publicou,
a partir de 1972, um excelente suplemento semanal de Banda de Desenhada,
“Quadradinhos”, concorrendo com dois suplementos mais antigos desse género, a
“Nau Catrineta” no Diário de Notícias (1964-1974) e o “Pim-Pam-Pum” no Século
(1925-1977).
Este último suplemento de BD, que saia às 5.ªs feiras,
era-me regularmente oferecido pelo meu avó, leitor regular de “O Século”.
Tudo isto se passa ao longo da década de 60, entrando
também, por essa altura, lá em casa, várias revistas de “quadradinhos”, entre
elas “O Foguetão”, que apenas publicou 13 números em 1961, e da qual cheguei a
ter a colecção completa, extraviando-se anos depois, mas que está hoje
disponível no site da Hemeroteca, a da qual apenas mantenho o suplemento
“Bip-Bip”, patrocinado por uma petrolífera, mas onde contactei pela primeira
vez com séries que me acompanhariam para a vida, o Tintin, na sua aventura no
Tibet, editada em francês, com intensões pedagógicas (o francês era, então, a
segunda língua ensinada nas escolas), a primeira aventura de “Astérix o
gaulês”, a “Armadilha Diabólica” da série Blake e Mortimer, Jerry Spring de Jijé
e Michelle Vaillant. Devido à curta vida dessa revista, todas essas aventuras
ficaram incompletas e, só mais tarde, pelos anos 70 na revista TinTin ou ainda
mais tarde em álbum, consegui ler o resto dessas aventuras. De qualquer modo, a
partir daí, fiquei fã da BD franco-belga, em detrimento de outras correntes da
9ª arte.
Também por essa altura comecei a comprar e a seguir, mas de
forma irregular, outra revista, onde a BD franco-belga era dominante, como a
revista Zorro, cuja publicação se iniciou em 1962, publicando-se até 1966.
Lembro-me de, nesta revista, me ter fascinado uma aventura de Ric Hochet, “A
Sombra de Camaleão”, publicada nessa revista em 1964. A intermitência na compra
dessa revista, levou-me a só conhecer o fim dessa aventura muito recentemente,
numa reedição em francês.
Lembro-me também de aparecerem lá por casa outras revistas
como “o João Ratão”, que se editou entre 1956 e 1963, ou a 2ª série d’ “O
Falcão” (1960-1987), principalmente quando nesta revista o herói publicado era
o Major Alvega.
O Major Alvega foi a aportuguesamento de Battler Britton, as
aventuras de um aviador inglês da 2ª Guerra cuja série foi criada em 7 de
Janeiro de 1956, com desenhos de Geoff Campion e argumento de Mike Butterworth,
série publicada em Inglaterra até 1987 e que teve mais de 10 desenhadores a dar
continuação à série, entre eles os consagrados Hugo Pratt e o argentino Dino
Battaglia. Na publicação em Portugal, por imposição da censura nacionalista, o
heroico aviador foi baptizado de Major Alvega, como “luso-britânico”, filho de
“pai alentejano” e mãe inglesa.
Mais raramente, também adquiria números dispersos de “O Mundo de Aventuras” (1949-1973) ou das “micro-revistas”
“Condor Popular” (1954-1972) e “Ciclone” (1961-1972), onde descobri séries
lendárias como o “Fantasma” ou o “Mandrake”, dois clássicos com argumento de
Lee Falk, a primeira desenhada por Ray Moore e criada em 1936, a segunda
desenhada por Phil Davis e criada em 1934. Personagem famosa dessas pequenas
revista era o boxeur Zé do Sopapo, aportuguesamento de Joe Palloka, outro
clássico inventado em 1921, mas só publicado em 1930, por Ham Fischer, que teve
como assistente outro nome famoso da BD norte-americana, Al Capp, criador, em
1934, de L’il Abner.
Esporadicamente também adquiria revistas editadas pela íbis
ou pela Abril, geralmente as versões em BD
de séries norte-americanas de animação, como o “Pinduca” (1953-1958). O
“Mindinho” (1953-1966), “O Gasparzinho” (1970-1977), o Pernalonga, mas também
as séries brasileiras Turma da Mónica e Cebolinha, criados por Maurício de Souza em 1959 e editados em
revista a partir de 1970. Da Mónica, agora “adolescente”, ainda se continuam a
editar revistas que podemos encontrar em quiosques.
Havia uma outra revista, num formato estranho, divulgando as
aventuras do “Capitão Trovão”, editado pela Íbis, um cavaleiro do século XII.
Mais tarde vim a descobrir que essa série de excitantes aventuras era de origem
espanhola, intitulada “Capitán Truena”, da autoria do catalão Victor Mora,
filho de pais exilados em França, como consequência da Guerra Civil, voltando
ao seu país natal em 1941, criando aquela série em 1956, voltando ao exílio
francês em 1962, perseguido pelo regime franquista.
Come se vê, existia então uma grande profusão de revistas de
quadradinhos, de publicação regular, vendidas em quase todos os quiosques ou
pelos ardinas “ambulantes”.
Já a edição de álbuns, hoje quase a única forma de contactar
com a BD, era rara nessa época, e
acessível apenas a alguns, devido ao preço. Alguns era editados no Brasil, como
os primeiros do TinTin.
Dos poucos álbuns que tive nessa altura, o de que me lembro
melhor foi o “Quebra Ossos”, álbum de 1963, tradução portuguesa de “Les
Croquillard”, de 1957, da série Clorofila e Minimum. Esse álbum foi uma edição
da revista “Camarada”, revista infanto-juvenil editada pela Mocidade
Portuguesa, onde foi publicada aquela aventura da série criada por Raymond
Macherot em 1954.
Curiosamente, esse álbum atinge hoje o maior valor de
colecção na venda de álbuns de BD em Portugal. Infelizmente , esse foi um dos
álbuns que me desapareceram.
Quem possuía muitos desses álbuns era o nosso amigo “Zico”
que os levava para a praia, e que nós devorávamos nas longas tardes de verão.
Aí lemos muito Astérix, Blake & Mortimer, TinTin, Luke Luke, Tenente
Bluberry….
Foi também por essa altura, já em meados dos anos 70 , que
nos deliciávamos com a rebeldia da Mafalda do argentino Quino, série criada em
1964 e 1973, mas que só foi editada em Portugal em meados da década de 70. Do
“grupo da praia de Santa Cruz”, já jovens adolescentes, entretínhamo-nos a
tentar identificar cada um de nós com os vários personagens da série. A mim
identificavam-me com o “Miguelinho”.
Tenho o privilégio de ter um desenho original da Mafalda que
me foi oferecido pelo próprio Quino, certa vez que com ele me cruzei numa Feira
do Livro em Lisboa.
Voltando aos anos 60, por esta altura, juntamente, com o meu
irmão Mário Luís, com o Carlos Ferreira e o seu irmão Marcos, fazíamos revistas
de um único exemplar com histórias por nós (mal) desenhadas, imitando as
revistas que tínhamos lá por casa. Pela minha parte “editava”, entre “outras”, a “revista” “Gavião”, uma imitação naif do
Falcão.
Mas foi o aparecimento em Portugal da revista Tintin, em 1
de Junho de 1968, que contribui para o crescente entusiasmo do pessoal pela
Banda Desenhada.
Recordo-me de ter começado a receber regularmente a revista,
a partir do seu segundo ano de edição, em 1970, que me era oferecida pelo meu
avô. Tirando a irregularidade dos 2 primeiros ano, e a falta posterior de um ou
outro número, consegui manter, até hoje, a colecção quase completa dessa revista, que se publicou
ao longo de 15 anos, até 1982.
Foram os textos de divulgação publicados nessa revista por
Vasco Granja que nos informaram do crescente movimento dos fanzines.
Todos queríamos imitar as aventuras de TinTin ou Blake
Mortimer, e de outros heróis da BD franco-belga divulgadas por essa revista.
Essa revista tinha, aliás, uma característica única, publicando, não só os
“heróis” da revista belga original, mas também da revista francesa, mais
criativa e original, Pilote, ampliando muito o leque de séries de grande
qualidade publicadas na edição portuguesa.
Em 1971 atrevi-me a divulgar, pela primeira vez, algumas
“pranchas” da minha autoria, como “suplemento” do jornal do liceu “O Padrão”,
editado por uma organização juvenil ligada à Mocidade Portuguesa.
O primeiro número desse jornal do “núcleo de jornalismo do
Liceu Nacional D. Pedro V – secção de Torres Vedras”, dirigido pelo saudoso
amigo Jordão Pereira, saiu em Janeiro/Fevereiro de 1971 e, nas duas primeiras
edições, inclui um suplemento “O Padrão Ilustrado” onde publiquei, em 2
edições, 4 pranchas das “Aventuras de João Alfredo”, intitulando-se essa
primeira, única e incompleta aventura “O Assalto ao Banco Nacional”.
O processo utilizado era o do “stencil a cera”, impresso a “álcool”,
tendo permitido editar duas pranchas a 4 cores, obrigando a desenhar em stencil
e repetidamente, a cores diferentes, essas pranchas, para se conseguir obter essa
“variedade” de cores. Escusado será referir a pouca qualidade dos desenhos da
minha autoria, algo naïfs, mas que procuravam imitar a “linha clara” de Tintin.
Entretanto fui-me cruzando com outros colegas do liceu que,
consumidores da revista TinTin e da BD, alguns com melhores qualidades que as
minha para o desenho, fomos trocando ideias e acompanhando com entusiasmo o
crescente movimento de fanzines, cuja evolução era narrada regularmente por
Vasco Granja nas suas crónicas de divulgação publicadas naquele semanário.
Em 1972 surgiu o primeiro fanzine português de BD, o Argon e
nós, em 6 de Janeiro de 1973, lançávamos o primeiro número do fanzine
“Impulso”, editado pelo Liceu de Torres Vedras, usando o método do processo
electórnico, muito mais “avançado” e fácil de trabalhar que o stencil a cera
usado no “Padrão”.
Sobre a história do Impulso e os dos seus autores, bem como
do “sucedâneo” BêDêzine, fala-se mais em pormenor noutro artigo.
Saliento apenas a minha criação de uma série animalista,
“Formiguite”, inspirado no cruzamento dos ambientes do já citado Clorofila e
Minimum e de uma aventura que li nos meus tempos de infância, numa colecção que
havia lá em casa do suplemento do “Mosquito” intitulado “A Formiga”, a série
“Anita Pequenita” da autoria do espanhol Jesus Blasco. Esta série pretendia ser
uma metáfora aos tempos da ditadura em que vivíamos nesse ano distante de 1973.
A série nunca foi terminada, embora tenho elaborado, pela primeira vez, um
argumento de base, em vez de ir desenvolvendo a história à medida do tempo…
Entretanto, entre os finais de 1975 e o início de 1976,
ainda no rescaldo do PREC, tive
oportunidade de publicar, durante cerca de 30 semanas, uma série de “tirinhas”
de Banda Desenhada, nas páginas do jornal local de Torres Vedras "Oeste
Democrático", o “Rei Minimus”.
A primeira tira tem a data de 20 de Junho de 1975.
Em 1985 retomei essa série, em novos moldes, com o objectivo
de participar no Iº Salão de Banda Desenhada de Torres Vedras, que se realizou
entre 14 e 22 de Dezembro desse ano.
Tirando a sua divulgação nessa exposição, esta 2ª série
ficou inédita, apresentando nesta edição comemorativa do Impulso alguns desses
“bonecos”.
Se a primeira série era ainda muito marcada pelo espírito
revolucionário dos anos 70, a adesão à então CEE é um dos temas focados nesta
segunda série, onde se recuperaram igualmente algumas das pranchas e temas da
primeira série.
O que mais me surpreendeu, passados quase 50 anos, é
actualidade desses cartoon's, muito influenciados pela série norte-americana do
Feiticeiro de Id, de J. Hart.
Devo dizer que, depois do 25 de Abril, aprofundei o meu
envolvimento no cineclubismo, acompanhei o entusiasmo da vida política e
associativa, estive no lançamento do jornal “Área”, conclui o meu curso de
História, envolvi-me na profissão de professor e na investigação da História
local e, ao longo das décadas de 80 e 90, fui-me, progressivamente, desligando
do mundo da BD, desfazendo-me até de algumas revista e álbuns que possuía.
Tendo-me envolvido, já neste século, no movimento dos blogs,
voltei a interessar-me pela BD, tendo reeditado as duas séries do “Rei Minimus”
no meu blog Pedras Rolantes, em 2008.
Foi assim que, progressivamente, me voltei a interessar pelo
universo da BD, criando um blog dedicado à 9ª arte e ao Cartoon, “BêDêzine”, em
2014, reiniciando aqui, no dia 8 de
Outubro de 2020, a divulgação de alguns daqueles cartoons, bem como outros
inéditos que estavam guardados.
Inicialmente
intitulada como "Rei
Minimus", rebaptizei-a agora como
"ReiNação".
Assim, nos últimos anos, tenho voltado a acompanhar o que se
vai fazendo na BD, apercebendo-me que tem havido uma grande inovação nesta
arte, através da realização de festivais e da edição de álbuns, arte que
conhece uma grande dinâmica criativa na França e na Bélgica, apesar do domínio
comercial, quase absoluto, dos “comic’s” “marvelianos” e da “manga”.
Pessoalmente, fico-me pela divulgação no meu blog “BêDêzine” e pela recuperação de trabalhos meus de outros tempos, não me atrevendo ainda a tentar retomar o desafio de desenhar personagens de BD. (
És mais um grande valor de Torres Vedras, digno dos teus pais. O teu Pai disse um dia que tinha receio de te ter criado complexos.
ResponderEliminarNo dia em que te vi, numa Sessão do Teatro Cine, do Cine Clube, a falar para o
ResponderEliminar.. povo, Ele já cá não estava, fiquei feliz.