quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Hergé, "TinTin por TinTin" - 4ª Parte - ...TinTin, o próprio!


É no mencionado “Le Petit Vingtiéme” que Hergé inicia a publicação das aventuras de TinTin, um “repórter” desse jornal enviado ao “país dos Soviéticos”. TinTin “parte” para a sua primeira aventura na edição de 10 de Janeiro de 1929.

A figura de TinTin teve origem no escuteiro Totor, que ele tinha criado para a revista de escuteiros onde se iniciou como ilustrador, com a diferença de agora usar "balões" para a fala dos personagens, em vez do tradicional texto que se publicava de baixo de cada vinheta.

O nome de TinTin parece ter tido origem e ser uma homenagem a uma das  bandas desenhadas preferidas da infância de Hergé, TinTin Lupin, da autoria de Benjamin Rabier, personagem criada no final do século XIX.



A aventura “TinTin no País dos Soviéticos” é publicada a preto e branco, como vai acontecer, aliás, com as 5 primeiras aventuras desse “herói”, com a excepção, já referida, da edição portuguesa.

Esta aventura foi sendo desenhada por Hergé ,sem um plano prévio, sem uma previsão quanto à forma como ía terminar, muitas vezes quase desenhada em cima do joelho e no limite do prazo de entrega para poder ser publicada. Finalmente, em 8 de Maio de 1930, era editada a última prancha dessa primeira aventura, que só conheceria outra edição nas páginas da revista francesa Coeurs vaillants, neste mesmo ano.Só então Hergé se deu conta do êxito dessa aventura, tendo encenado o regresso da Rússia do herói imaginário, com figuras reais, à estação central de Bruxelas.

Esta primeira aventura será também uma das mais controversas, baseada numa obra de propaganda anti-comunista, “Moscou sans Voiles” (Moscovo sem véus), escrita pelo ex-cônsul belga na Rússia, Joseph Douillet, editado em 1928, best-seller na Bélgica desse tempo.

Hergé, muito jovem ainda, foi também  influenciado pelo espírito conservador do próprio jornal e do seu director, o padre  Wallz, admirador do fascismo italiano, mais tarde preso por colaboracionismo com os ocupantes nazis.

Quando, mais tarde, Hergé resolveu redesenhar os seus primeiros álbuns, recusou-se a fazê-lo com essa primeira obra, que o próprio renegou e impediu que tivesse sido reeditado, até quase ao ano da sua morte, em 1983.

O que é um facto é que essa primeira aventura, se foi muito influenciada pela propaganda anticomunista da época e exagerou na caricatura dos bolcheviques, acabaria por se tornar premonitório em relação ao rumo totalitário que a revolução soviética tomou na década de 1930, sob a terror stalinista.






Fosse como fosse, nessa primeira aventura já se encontravam alguns dos traços que caracterizaram as aventuras de TinTin, como o suspense no final de cada prancha, recorrendo à técnica  que Hergé foi buscar ao cinema de Hitchcock, a simplicidade das linhas, na origem da chamada “linha clara”, e a utilização do balão para as falas dos personagens, em vez da forma tradicional de usar a imagem como simples ilustração de um texto.

O termo “linha clara” para classificar o estilo de Hergé e de outros autores da escola franco-belga teve origem no termo holandês Klare Lijn aplicado pelo desenhador gráfico Joost Swarte, na exposição dedicada a TinTin “Kuifje in Rotterdam”, realizada nesta cidade entre 5 de Fevereiro e 14 de Março de 1977.

Sobre a famosa “linha clara”, para Edgar Pierre Jacobs, esse estilo não passou de um mito, já que foi imposto por razões técnicas, pois alguns pormenores e cores não passavam no tipo de impressão usado nos anos 30/40 do século XX, sendo necessário simplificar o desenho e torna-lo o mais eficaz e legível possível.

Benoît Peeters, biografo de Hergé, afirma que este “introduziu uma revolução discreta na banda desenhada europeia” ao tratar de temas adultos e falando do mundo contemporâneo num jornal infantil.

A segunda aventura da série foi igualmente controversa, “Tintin no Congo”, muito marcado pelo espírito colonialista, num país, como a Bélgica, que tinha no Congo a sua principal colónia africana. Hergé tinha desejado escrever, como segunda aventura, uma aventura na América, mas a direcção do jornal pressionou o autor a escolher uma aventura passada nessa colónia belga, para reforçar a propaganda colonialista que estava no espírito desse órgão de comunicação.

Hergé niciou a publicação dessa aventura em 9 de Julho de 1931, sem, segundo as suas palavras, nada saber desse país, “a não ser o que se dizia na época: Os negros são crianças crescidas, Ainda bem que nós lá estamos, e outras coisas do género”, desenhando “esses africanos segundo tal bitola, no mais puro espírito paternalista, que era aquela que então se vivia na Bélgica” (entrevista com Numa Sadoul).

Contrariado e sem entusiasmo Hergé começou a editar essa segunda aventura em 9 de Julho de 1931.

Mais tarde Hergé, mais maduro e mais politizado, desculpando-se com a juventude e o espírito do tempo, reviu toda aventura em 1946, retirando-lhe as suas características mais colonialistas, revendo diálogos e algumas cenas.

Nessa aventura, TinTin conhece o primeiro de uma galeria de personagens infantis, o negrito Coco, companheiros das aventuras do célebre “repórter”.






Em 1932 consegue, finalmente, iniciar a aventura que tanto desejava desenhar, “TinTin na América”. Esta aventura seria totalmente redesenhada em 1946. Esta aventura reflecte muito da influência do cinema norte-americano, cruzando os ambientes do “Cinema negro” e do Western. O filme critica muito do ambiente social norte-americano, denunciando principalmente o racismo e o tratamento dado aos índios.



“Os Cigarros do Faraó” vai ser a quarta aventura de TinTin, que conhece uma nova dimensão, a do mistério e do fantástico, num ambiente e em cenários mais elaborados que nas histórias anteriores.

Será totalmente redesenhada em 1955. Nesta aventura, passada em vários países do Oriente, surgem vários personagens que vão marcar a série, ao longo do tempo, como o vilão Rastapopoulos ou o comerciante português Oliveira da Figueira ou os famosos policias Dupond e Dupont, designados, originalmente, como os agentes X33 e X33bis.

Até ao “Lótus Azul”, de 1934 , continuação da aventura anterior, a evolução das aventuras ia-se desenrolando de forma espontânea, sem um plano pré concebido.

Foi o próprio Hergé que afirmou que, até o “Lótus Azul”, as aventuras de TinTin “eram uma série de peripécias cómicas e emotivas (…) sem argumento nem plno de trabalho. (…) Le Petit Vingtième saía às quartas feiras à noite e por vezes acontecia-me não saber na véspera como é que eu libertaria TinTin da má situação da qual eu o tinha abandonado durante a semana anterior”(entrevista a Numa Sadoul).

Foi só a partir desta aventura que Hergé iniciou a forma de trabalhar que seguiria daí para frente, documentando-se com rigor, planeando o desenrolar da acção e usando a tinta da china.



Essa mudança foi provocada por uma carta que Hergé recebeu do abade Gosset.

Tendo sido anunciado no jornal que a próxima aventura se passaria na China, nessa carta este padre,  criticando a falta de rigor que tinha detectado nas aventuras anteriores de TinTin, ofereceu-se para o ajudar na busca documental, e a evitar os clichés sobre a China. Professor da Universidade de Lovaina, onde orientava estudantes chineses, recomendou um jovem chinês, Tchang Tchong-Yen, para o ajudar a documentar-se e a conhecer a realidade chinesa.

Nascido em Xangai, Tchang  era um estudante de pintura e escultura, e entre ele e Hergé, ambos nascidos no mesmo ano de 1907, estabeleceu-se uma sólida amizade.

O jovem Tchang colaborou activamente com Hergé na recolha de documentação sobre a China, ao mesmo tempo que o esclarece sobre a cultura desse país.

Também o introduz na técnica do uso da tinta-da-china, que permitiu a Hergé tratar as cenas nocturnas como sombras chinesas.

Como homenagem a essa colaboração, Hergé dá o nome desse novo amigo a um dos personagens dessa nova aventura. Tchang, o personagem de BD, voltará a reaparecer no “TinTin no Tibet”.

No final dos anos de 1930, Tchang, o verdadeiro, regressa à China, onde se torna um escultor famoso, aderindo à Revolução Chinesa do pós guerra, mas acabando vítima da Revolução cultural dos anos de 1960.

A Guerra europeia e a situação política na China do pós Guerra leva Hergé a perder o rasto de Tchang,  não desistindo, contudo, de o procurar.

Em 1976 consegue, finalmente, localizá-lo, e inicia uma troca de correspondência com o seu amigo da juventude, enviando-lhe exemplares dos álbuns “O Lótus Azul” e “Tintin no Tibet”, onde Tchang aparecia como personagens. Finalmente, em Março de 1981, os dois amigos, já septagenários, reencontram-se em Bruxelas.

O reencontro será de pouca duração, porque Hergé morre dois anos depois. Tchang estabelece-se em França e, ainda antes de falecer em 1998, homenageia o seu amigo, esculpindo o busto de Hergé.

A partir de “O Lótus Azul”, as aventuras seguintes de TinTin, “A Orelha Quebrada” (1937), “A Ilha Negra” (1938), e “O Ceptro d’Ottokar” (1939) vão caracterizar-se por um rigor narrativo e um grafismo mais cuidado.

Foi também a partir daquela aventura que Hergé, segundo as suas próprias palavras, se começou a interessar “verdadeiramente pelas pessoas e pelos países aos quais” enviava Tintin.

Além de mudar de método, Hergé beneficiou também de se distanciar da influência ideológica do padre Wallz, afastado do “Vigtiéme Siécle” em 1933, devido às suas simpatias nazi-fascistas.

Se em o “Lótus Azul” Hergé alerta para o perigo do expansionismo do Império Japonês e denuncia os estereótipos em relação ao mundo asiático, em “O Ceptro de Ottokar”, cuja primeira prancha foi publicada em 4 de Agosto de 1938, com o título de "TinTin na Sildávia, denuncia, de forma metafórica, o crescente perigo do expansionismo nazi, chegando mesmo a apelidar um dos vilões dessa aventura e “Müsstler”, combinação dos nomes de Mussolini e Hitler.

Recorde-se que, em 12 de Março desse ano tinha acontecido o “Anschluss”, a anexação da Áustria pela Alemanha nazi.

A última prancha de “O Ceptro de Ottokar” foi publicada no “Le Petit Vingtiéme” em 10 de Agosto de 1939, menos de um mês antes do início da Segunda Guerra Mundial, em 1 de Setembro de 1939.




Nos finais de 1939 Hergé é mobilizado para o exército, sendo colocado no norte da Bélgica. Apesar dessas obrigações militares, ele consegue arranjar tempo para enviar 2 pranchas por semana da nova aventura de TinTin, “TinTin no País do Ouro Nego”, que era a continuação da aventura anterior.

Quando em 9 de Maio de 1940 a Bélgica é ocupada pelos nazis, estes encerram o “Vigtiéme Siécle”, apesar deste jornal ser conservador e simpatizante do fascismo, e a publicação daquela aventura é interrompida.

Essa situação leva à interrupção da publicação dessa aventura de TinTin, que só será retomada e concluída em 1948, sendo modificado o início da história, assim como a fisionomia dos personagens.

No momento da invasão, e desde 10 de Abril, Hergé encontrava-se em território francês, acompanhado da sua primeira esposa e do seu gato, aguardando em Paris o desenrolar da situação no seu pais.

Regressado à Bélgica, Hergé encontra-se desemprego, recusando um lugar no jornal oficial do movimento rexista, o movimento nazi-fascista belga, mas, para sobreviver, aceita continuar a publicar as aventuras de TinTin no jornal Le Soir, agora totalmente controlado pelos ocupantes nazis.

Hergé cria um suplemento juvenil nesse diário, “Le Soir Junesse”, editado pela primeira vez em 17 de Outubro de 1940, onde reaparecem as aventuras de TinTin, a aventura “O Caranguejo das Tenazes de Ouro”. Quando esse suplemento encerra, em 23 de Setembro de 1941, devido às dificuldades em obter papel para edição, essa aventura continua a ser publicadas, mas agora em pequenas  “tiras” diária na edição principal desse jornal.

Irá publicar ainda, nessa época, outras três aventuras de TinTin, “As Sete Bolas de Cristal”, “O Segredo do Licorne” e a continuação desta aventura, “O Tesouro de Rackan o Vermelho”. Ao contrário das aventuras editadas antes da ocupação, estas histórias não abordam acontecimentos reais, praticando uma “literatura de pura evasão”, única forma de escapar à censura nazi, até porque duas aventuras anteriores a esse período foram proibidas de circular pelo ocupante nazi, “A Ilha Negra”, acusada pela censura nazi de anglófila, por causa das referências à escócia, e “TinTin na América”, por se passar noutro país inimigo, os Estados Unidos. Curiosamente, “O Ceptro d’Ottokar”, por muitos considerada uma história anti-fascista, escapa à censura.

Não podendo explorar a realidade que o rodeava, Hergé vai acabar por enriquecer o mundo interior das aventuras de TinTin, surgindo neste período uma galeria de personagens que vão enriquecer a série, do ponto de vista narrativo,  psicológico e dramático.

O capitão Haddock surge pela primeira vez em “O Caranguejo das Tenazes de Ouro”, Nestor e o castelo de Moulinsart em “O Segredo do Licorne”, o professor Tournesol em “O Tesouro de Rackan o Vermelho” e Serafim Lampião nas “Sete Bolas de Cristal”.

Quando a Bélgica é libertada pelos aliados, em 3 de Setembro de 1944, todos os responsáveis e colaboradores do Le Soir são acusados de colaboracionismo. A publicação de “As Sete Bolas de Cristal” nesse jornal é interrompida nessa data. Hergé é preso por quatro vezes e atravessa um período difícil. Só em Maio de 1946 é que Hergé consegue obter da forças aliadas um “certificado de civismo”, pois nunca se descobriu qualquer atitude de Hergé, ou no conteúdo das aventuras de Tintin publicadas durante a ocupação nazi, que revelasse simpatia ou colaboração com os ocupantes.

Recorde-se, aliás, que Hergé tinha publicado, nos anos 1930 desenhos antimilitaristas  anti-Hitler, situação evidente num gag da série Quick e Flupke de 1933, ridicularizando os discursos radiofónicos de Hitler e Mussolini, ou num personagem com uma vida efémera de 4 gags, Monsieur Bellum, publicado em 1939 no semanário belga neutralista “L’Ouest”, onde o personagem, na sequência de um desses gags escreve numa parede “Hitler est un fou!”, sem esquecer o acima referido“O Ceptro de Ottokar”, publicado também neste ano.





Como já referimos, até 1942 as aventuras de TinTin foram editadas a preto e branco. A primeira aventura passada a cores foi “A Estrela Misteriosa”, para o álbum editado em 1942.

A introdução da cor nas aventuras de TinTin ficaram a dever-se à insistência de Louis Casterman junto de Hergé para que a edição em álbum dessa série fosse a cores, para rentabilizar o uso de uma máquina de offset que esse editor tinha adquirido.

Inicialmente Hergé mostrou-se renitente em colorir a sua série, considerando que a introdução da cor retirava nitidez ao seu desenho, para além de não dominar as técnicas de colorir. Por outro lado, aquele editor também queria que Hergé, para a edição em álbum de TinTin, redesenhasse as aventuras deste personagem para caberem nas 62 páginas de um álbum, limite imposto pela falta de papel durante a guerra, e que se tornou norma. Hergé ficou ainda preocupado com o aumento de trabalho que isso ia provocar.

Para o convencer, Casterman encorajou Hergé a rodear-se de colaboradores. Este então lembra-se de um personagem que lhe tinha sido apresentado em 1942 por Jacques Van Melkebeke, um amigo comum, um tal Edgar Pierre Jacobs, cujo trabalho na revista Bravo, principalmente as suas qualidades de colorista reveladas na aventura aí publicada, Le Rayon U, muito tinham impressionado Hergé.

Meses depois daquele primeiro encontro, ambos iniciam a colaboração para colorir, primeiro “TinTin no Congo”, depois o “Lótus Azul”, “O tesouro de Rackan o Vermelho” e “O Ceptro de Ottokar”. Jacobs, para este último álbum, ajuda Hergé a redesenhar cenários e uniformes.

Jacobs confessaria mais tarde que ambos se divertiram imenso a rever “O Ceptro d’Ottokar”, onde caricaturaram, como personagens dessa aventura,  vários conhecidos e amigos.

Aliás, o próprio Jacobs acabou, anos mais tarde,  caricaturado, dentro de um sarcófago na capa de “Os Cigarros do Faraó”, editada em 1955.


Perante o êxito dessa colaboração, Hergé convidou Jacobs para o ajudar a documentar-se para duas aventuras, o complemento da interrompida “As 7 bolas de cristal” e a nova “O templo do Sol”. Jacobs foi mesmo fundamental na elaboração dos cenários dessas aventuras.

Por essa altura, logo após a libertação,  chegaram a ponderar realizar três histórias diferentes em conjunto, assinando com um pseudónimo comum: OLAV:

Uma das séries era ao estilo Western, outra policial e a terceira passar-se-ia no Pólo Norte.

Chegaram a elabora três pranchas, uma para cada série, mas entregaram-no a um negociante de Bruxelas que desapareceu com elas, ficando essa idéia sem efeito.

Também realizaram em comum o projecto de “Voir e Savoir”, uma colecção de cromos consagrada à história dos meios de transporte, continuada mais tarde pelos “Estúdios Hergé” .

Foi assim, de forma natural, que Hergé convidou Jacobs a fazer parte da equipa fundadora da revista “TinTin”, lançada em 1946 ( e que se publicou até 1988, conhecendo versões em vários países, como em França, cuja edição se iniciou em 28 de Outubro de 1948, na Holanda, onde TinTin foi deignado como Kuifje, e, a partir de 1968, em Portugal) .

O projecto da revista ficou  a dever-se a Raymond Leblanc, que combateu na resistência contra a ocupação nazi, e, durante os 2 primeiros anos, as suas páginas foram partilhadas por 4 autores, para além de Hergé e Jacobs, por Paul Cuvelier e Jacques Laudy.

A edição belga original da revista TinTin publicou o seu último número em 29 de Novembro de 1988, devido ao facto de a Fundação Hergé ter retirado à editora Lombard o direito de publicar um jornal com o título de TinTin.

 “O Templo do Sol” foi a primeira aventura de TinTin publicada a partir do 1º número  da revista, saído em 26 de Setembro de 1946.

Jacobs trabalhava durante metade do dia para Hergé e, na outra metade, na primeira aventura de Blake e Mortimer, publicada também logo no primeiro número desse semanário, “O Segredo do Espadão”.

Jacobs acabou por desistir da colaboração com Hergé, em 1947, devido ao excesso de trabalho, mas também, ao que parece, por algumas divergências pessoais, pois Jacobs terá exigido que o seu nome também constasse na autoria das aventuras de TinTin, onde a sua colaboração como cenarista e colorista foi fundamental para o êxito da série, até porque Hergé passou a exigir que Jacobs passasse a dedicar-se a 100% a TinTin….ma mantendo Hergé como único autor.

Apesar das divergências, a amizade entre os dois autores manteve-se sempre forte até à morte de Hergé em 1983 (Jacobs só lhe sobreviveu 4 anos, falecendo em 1987).

Para colmatar o afastamento de Jacobs, Hergé fundou, em 1950, os “Studios Hergé”, reunindo à sua volta vários jovens e talentosos colaboradores, tais como Bob de Moor, Jacques Martin, Roger Leloup e Boudouin van den Braden, entre muitos outros.

O primeiro trabalho, sob orientação directa de Hergé, foi retomar e completar a aventura “O País do Ouro Negro”, interrompida quando do encerramento do Le Vigtiéme Siécle em 1940.

Seguiu-se um dos seus projectos mais ambiciosos da série, “Objectivo Lua” e “Em Marcha sobre a Lua”. Seguiram-se “O Caso Tournesol” e “Carvão no Porão”.

Uma outra componente dos Estúdios foi recupere alguns projectos anteriores à guerra, como colorir as histórias mais antigas que ainda não tinham passado por essa transformação, bem como colorir e rever “As Aventuras de Jo, Zette et Jocko” e “As Explorações de Quick e Flupke”, modernizando também alguns detalhes decorativos dessas histórias antigas.

O terceiro tipo de actividades desse estúdio foi dar continuidade à colecção de cromos “Voir et savoir”, elaboração de calendários e folhetos publicitários, usando personagens da série.

A consagração da série atinge o auge nos anos 1950, com traduções das aventuras de TinTin para quase todo o mundo, com tiragens gigantescas dos álbuns, aparecendo também nessa década, em 1959, o primeiro livro consagrado a um autor de Banda Desenhada, “Le Monde de TinTin”, da autoria de Pol Vandromme.

Contudo, o êxito mundial da série coincide com um período de depressão, esgotamento e crise pessoal vivido por Hergé, iniciado em 1958.

Essa situação leva-o a acabar, com grande dificuldade,  a elaboração do álbum “TinTin no Tibet”.

Ultrapassada a crise, com recurso à psicanálise, Hergé edita aquela que é considerada por muitos a sua obra prima, “As Jóias de Castafiore”, aventura publicada em 1963, onde um grupo de ciganos acampados junto a Moulinsart dá oportunidade a Hergé de criticar os preconceitos racistas em relação a essa etnia.

Nos anos de 1960, a série conhece um novo impulso, com a realização de filmes, com personagens reis, baseados na série, o primeiro dos quais foi “O Mistério do Tosão de Ouro”, em 1961, de dois filmes de animação de longa metragem, entre estes a adaptação de “TinTin e o Templo do Sol”, realizado em 1969, e de uma série de cinema de animação para a televisão, saída dos Estúdios Hergé.

O ritmo de trabalho de Hergé ao longo doa anos 60 torna-se mais lento. Depois de “As joias de Castafiore”, será preciso esperar cinco anos por uma nova aventura de TinTin, “Voo 714 para Sidney”, editado em 1968.

Para a lentidão do seu ritmo de trabalho contribui a sua nova paixão, a pintura, à qual ela chega mesmo a pensar dedicar-se em exclusividade, abandonando a Banda Desenhada. Na mesma época Hergé viaja imenso, não só pela Europa, mas, pela primeira vez, em 1971, aos Estados Unidos, viajando para Taiwan em 1973. Neste caso foi o cumprimento de um desejo, adiado desde 1939, quando tinha sido convidado pelo governo de chinês da altura a visitar o país, como paga pelo “serviço prestado” à causa chinesa, então ameaçada pelos japoneses, no seu álbum “Lótus Azul”.

Em 1972 os estúdios Belvision de Bruxelas estreiam um filme de animação, “Tintin e o Lago dos Tubarões” realizado por Raymond Leblanc, com argumento de Michel Greg e a colaboração de Hergé.

Ao contrário de outros projectos cinematográficos de aventuras de TinTin, que partiam das aventuras já editadas por Hergé, neste caso aconteceu o contrário, publicando-se um álbum que é a cópia da animação, onde Hergé teve um papel secundário na elaboração, tanto do argumento como dos desenhos.

Desta vez será necessário esperar 8 anos  por uma nova aventura de Tintin, a última completada por Hergé, “TinTin e os Picaros”, editada em 1976.

Em 1979, o cinquentenário de Tintin realiza-se com grande fausto e cerimonial em Paris e em Bruxelas, com uma grande exposição que percorrerá a Europa, “O Museu Imaginário de TinTin”.

Durante o principio da década de 1980 as aparições públicas de Hergé tornam-se cada vez mais raras. Por essa altura, o autor anuncia que está a desenhar uma nova aventura que se passará no meio das artes plásticas, ao mesmo tempo que prepara um gigantesco fresco para uma estação de metro em Bruxelas.

Sabe-se, entretanto, que Hergé sofre de leucemia e, em 25 de Fevereiro de 1983, na sequência de uma falência cardíaca, é hospitalizado, acabando por falecer no dia 3 de Março, pelas 22 horas. Tinha 75 anos.

O seu 24º álbum, “TinTin et L’Alph’Art”, passado no âmbito do mundo da arte, ficou assim inacabado.








Ao contrário de outras séries, Hergé deixou o pedido aos seus herdeiros, a sua 2º esposa, Fanny Remi,27 anos mais nova, para que a série não voltasse a ser retomada por outros autores.

Tendo-se voltado a casar, com o inglês Nick Rodwell, dono da Loja TinTin em Londres, Fanny fundou com o seu actual marido a Moulinsart , sociedade detentora de todos os direitos da obra de Hergé.

Sabe-se, entretanto, que até 2054, será editada uma nova aventura de Tintin, com o objectivo de evitar que a série e os seus direitos de autor caiam no domínio público, o que acontecerá nesse ano.

As gerações mais novas, que já não viveram as aventuras de TinTin nas revistas entretanto desaparecidas, terão tido um primeiro contacto com a série no filme de Spielberg 2011.

Hergé e a “sua” “linha clara” fizeram escola entre muitos outros autores de BD, como os holandeses Joost Swarte e Theo van den Boogard, os franceses De Floch, Ted Benöir e Serge Clerc e Tardi ou o belga Alain Goffin, sem esquecer Yves Chaland que homenageia as suas influências na série Freddy Lombard, reivindicando-se igualmente como seus “herdeiros” estéticos autores norte-americanos como Charles Burns ou Chris Ware, sem esquecer os muitos autores por ele influenciados que passaram pelos “estúdios Hergé” e pela revista TinTin.

Interrogado sobre a morte e a reincarnação, Hergé respondeu que gostaria de retornar à terra sob a forma de um gato siamês, “mas vivendo no seio de uma boa família”. 

Se virem um por aí, mostrem-lhe um álbum de Tintin e peçam-lhe um autógrafo. No mundo de Hergé, nunca se sabe!!

(CONTINUA)

Bibliografia consultada e/ou recomendada (Toda ela existente no arquivo pessoal do autor do blog, entre muitas outras obras) :

- De Avonturen van Kuifje in Portugal (A Aventura de TinTin em Portugal), “Sapperloot” nº 5 , 2004;

- BOLÉO, João P., “Hergé fascista ou aventureiro?”, in revista do Expresso de 16 de Janeiro de 1999, pp.34 a 41;

- CALADO, Jorge, “Aventura de TinTin – Objectivo Portugal”, in E –Revista do “Expresso”, 1 de Outubro de 2021, pp.20 a 28;

- CRATO, Nuno, “TinTin e a Ciência”, in “Única”, suplemento do Expresso, 8 de Março de 2003, pp.68 a 72;

- GALLO, Claude le, “TinTin herói do século vinte”, tradução de Vasco Granja, publicada ao longo do 1º ano da edição da revista portuguesa TinTin, de um artigo publicado no nº 4 do 3º timestre de 1967 da revista “Phénix”;

- MARMELEIRA, José, “No Museu de Hergé”, in Ípsilon-Público, de 1 de Outubro de 2021;

- MENDES, Pedro Boucherie, “TinTin, a Eurostar”, in E-Revista do “Expresso”, pág.27, 1 de Outubro de 2021;

- LE Musée Imaginaire de TinTin, Sociéte des expositions du Palais des Beaux-Arts de Bruxelles, 1979;

- PESSOA, Carlos, As Aventuras de TinTin no Público – Guia de Leitura, ed. Público/Oficina do Livro,2004;

- PESSOA, Carlos, “Hergé – Morte e vida de um mito”, in Público Magazine, nº 157 de 7 de Março de 1993, pp.14 a 25;

- PESSOA, Carlos “TinTin Partiu há 70 anos para o país dos soviéticos”, in “Pública” (suplemento dominical do jornal Público),10 de Janeiro de 1999,  pp. 20 a 27

- PEETERS, Benoît, Hérge – Filho de TinTin, ed. Verbo 2003 ( a mais completa biografia de Hergé);

- “Porquoi on aime le capitaine Haddock?”, dossier da revista Les Cahiers de La BD, nº 15, Julho/Setembro de 2021, pp.90  a 115;

- La Grande Aventure du Journal TinTin, ed. Lombard  

- Le rire de Tintin – les secrets du génie comique d’Hergé, nº especial L’Espress/BeauxArts magazine, 2014;

- La Saga du Journal TinTin, número especial da revista Paris-Match, 2016;

- Special Hergé, Schtroumpf-Les Cahiers de La Bande Dessinée, nº14/15, Setembro/Dezembro de 1971 (inclui uma longa e célebre entrevista dada por Hergé a Numa Sadoul, publicada na revista portuguesa “TinTin”, ao longo do 6º ano da sua edição, com tradução de Vasco Granja);

- Special Hegé – Vive TinTin, número especial da revista (A Suivre) publicado por ocasião da morte de Hergé em Abril de 1983;

- TAVARES, João Miguel, “Hergé em formato familiar – As “Aventuras de Joana, João e do Macaco Simão” são mais um tijolo no edifício da linha clara erguido pelo mestre belga”, in Diário de Notícias, 30 de Julho de 2001;

- Tintin – C’est l’aventure, nº 9, Setembro/Novembro de 2021, ed. Geo

- TinTin – L’Aventure Continue, “hors série” da revista Télérama, Janeiro de 2003;

- TinTin grand Voygeur du siècle, nº especial da revista GEO, 2000;

- TinTin – survivra-t-il? , Haga – Revue de Bande Dessinee, nº16-17 , Inverno de 1974;

 - Tisseron, Serge, Tintin No Psicanalista, ed. Bertrand;

Sites: TinTinófilo; História da BD publicada em Portugal.

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